Maio de 68 foi um movimento inicialmente sem comando, espontâneo que pegou a todos de surpresa. |
Por Daniel Vieira Sebastiani*
Há uma clara dificuldade em se distanciar
de um fenômeno social que ocorre no seu período de vida e no instante em que
acontece. Mas, a análise e o conhecimento da história podem ajudar a desvendar
a essência dos fatos.
Em primeiro lugar, cabe desmistificar o
papel das novas tecnologias nos acontecimentos. Sem dúvida, a comunicação via
internet acelerou, e muito, situações que levariam mais tempo. No entanto,
movimentos espontâneos sempre existiram. Na Rússia Imperial foi um movimento
absolutamente espontâneo, de donas de casa que saíram à rua para reclamar das
panelas vazias, e que conseguiram o apoio das tropas mandadas para reprimi-las,
que garantiu a derrubada do Império secular na chamada Revolução de Fevereiro,
anterior a Revolução de Outubro, esta sim, planejada e socialista. O mesmo pode-se
dizer da Comuna de Paris que iniciou de forma espontânea.
Movimentos espontâneos são milenares e,
portanto, nenhuma novidade.
Há, sem dúvida, particularidades em
momentos históricos tão distintos e são estas que nos interessam.
Para tentar nos aproximar cabe analisar um
movimento social mais recente que guarda alguns grosseiros parâmetros, embora
tenha sido muito maior e relevante historicamente, com a ação atual no Brasil.
Maio de 68 foi um movimento inicialmente
sem comando, espontâneo que pegou a todos de surpresa. Se tornou algo enorme
que levou às famosas barricadas em Paris, à destruição de carros, à paralisação
da França, de forma tão intensa que o Presidente De Gaulle teve que fugir do
País.
Maio de 68 foi um movimento, na origem, sem
conexão com os grandes partidos, dos Gaullistas da direita aos Comunistas.
Maio de 68 iniciou com grupelhos radicais,
mas se estendeu muito além deles.
Maio de 68 foi um movimento de jovens
revoltados, cada vez mais amplo, que eram contra tudo e não sabiam bem a favor
de quê, mas protestavam contra as injustiças e a sociedade consumista, queriam mais,
queriam outro futuro, fora de todas as opções existentes à esquerda e à direita.
Por isso, as bandeiras eram algo tão vago e difuso como: “É proibido proibir”;
“A imaginação no poder”, “Tire o asfalto da rua e você encontrará a Praia”.
Maio de 68 queria o novo e não o velho; sem
saber onde se encontra o novo. Contra as injustiças da família patriarcal e
contra o socialismo real, contra as injustiças do capitalismo e contra a
esquerda partidária.
Maio de 68 representou os jovens que foram
fruto da melhoria da vida na Europa no pós-guerra com a reconstrução e as
políticas sociais; o acesso às condições dignas de vida, que antes não existiam,
o acesso à Universidade, que antes não ocorria; o acesso ao conhecimento.....mas
que se perguntavam, e agora? Que fazer com isto? Onde está o nosso espaço
diante da rigidez das estruturas universitárias e a da falta de perspectivas de
fazer algo além de consumir um pouco mais, e ... sempre menos do que outros...
No Brasil de hoje as condições da sociedade
melhoraram, o acesso à universidade melhorou, a economia e a justiça social
avançaram. No entanto, as camadas médias tradicionais não vislumbraram grandes
avanços para si, a não ser talvez na esfera do serviço público, como
servidores, e nos ganhos de capital indiretos, fruto do avanço econômico na
esfera privada.
Por outro lado, se sentem órfãs na política
quando não vislumbram uma saída no neoliberalismo e não se sentem contempladas
nas políticas de Governo de ampliação dos direitos, tendo, pelo contrário, de
enfrentar novas concorrências, velhos encargos tributários injustos e novos
encargos salariais aos eventuais empregados.
Assim como em 68 o motor são os jovens, sobretudo das camadas médias.
A conexão de simpatia com a base da sociedade ocorre por conta das
demandas em favor de um transporte público de qualidade e mais barato e das
reivindicações por saúde e educação.
A falta de relação com os partidos e movimentos organizados, responde a
fatores semelhantes aos jovens de 68: os movimentos sociais tradicionais e os
partidos de esquerda se vinculam a uma política mudancista que nem sempre
atende a estas camadas médias e estão tolhidos, no seu ímpeto de luta, pela
burocratização, compromissos governistas e arranjos eleitorais. A luta contra o
aumento das passagens não passava, quando era feita, de mero ritual que logo se
esgotava, isto quando os compromissos eleitorais, governistas e de
financiamento de campanhas não impediam os partidos de esquerda de agir nesse
sentido.
Portanto, é nesse vácuo de mobilização que
se “externaliza” este sentimento coletivo contra a corrupção, a política
tradicional, rotulada pela mídia como corrupta e assim assimilada pelos que
protestam, tendo como consequência certa negação dos partidos.
Em resumo: a falta de programa claro, liderança
clara e objetivos claros, além da redução do valor das passagens, trazem, em si,
a evidência de um setor que não têm identidade com qualquer programa efetivo e
se solidifica no vácuo de mobilização deixado pelo tradicional campo de
esquerda e popular representativo dos trabalhadores.
É uma terra de ninguém e de todos, razão pela qual cada setor da
política e da sociedade têm evitado confrontá-lo diretamente, com a esperança
de dirigir-lo ou,pelo menos, neutralizá-lo em relação a si: é a postura dos
monopólios da imprensa, do governo e dos partidos.
Quem vencerá a batalha é difícil dizer: o que tende a ocorrer é, a
história já nos mostrou dezenas de vezes, um arrefecimento, mais ou menos lento,
da mobilização, o que não significa, necessariamente, a ausência de consequências
de longo prazo, estas podendo ocorrer em diversas direções.
Na Europa, 68 permitiu alterações nos espaços de cidadania e direitos,
desde as relações familiares tradicionais aos direitos individuais, passando
pelo desenvolvimento da educação pública e do estado de “bem estar social”
tendo, no entanto, e de forma perigosa, como efeito imediato, a vitória
eleitoral da direita e o desenvolvimento de um nefando pós-modernismo
anti-socialista.
Ao contrário do Governo de direita francês, que atacou à época de forma
repressiva as manifestações, o Governo popular de Dilma dialoga com o mesmo para
tentar pautá-lo. Assim como o Partido Comunista Francês e o movimento sindical
entraram na luta para obter vantagens trabalhistas dos patrões e do governo, ao
mesmo tempo em que atacavam os radicalismos espúrios e anti-partidos de parte
do movimento, a esquerda brasileira e o movimento social organizado devem
tentar disputar e pautar as manifestações atuais.
As circunstâncias apontam alguns limitadores: a esquerda é governo e,
portanto, têm limites à capacidade de radicalização em favor do “contra”. Por
outro lado, enquanto governo, tem enormes possibilidades de tentar direcionar a
ação para o seu lado: radicalizar contra os privilegiados e o capital
financeiro, por exemplo, “o combate aos privilégios e privilegiados da
sociedade brasileira através de projetos de lei sobre o imposto às heranças e
fortunas ou sobre o controle social da mídia”. Mas a moderação imposta pelas
circunstâncias e concepções do Governo tende a atrapalhar esta saída. Fica-se
com a possibilidade de ações de vulto na esfera do transporte público de
massas, ou algo semelhante, e...apenas declarações de simpatia pelo movimento.
O desfecho deste processo, além do previsível esgotamento e falta de
consequências em termos de alterações nas estruturas de poder, pode apontar
para um gradual domínio do movimento social com a definição mais clara de uma
pauta e ação ou para um domínio da direita, através da mídia, no sentido de um
grande protesto contra a corrupção habilmente dirigido contra a política, os
partidos e, (através da copa e falta de melhor educação e saúde), o Governo
Dilma, abrindo caminho para um fortalecimento eleitoral da direita que, além do
mais, capitalizará aqueles setores assustados com a “baderna” e desejosos de
alguém que traga “a ordem”, o que ocorreu, guardadas as diferenças, na França
pós-68.
Mesmo que aqui o desenlace seja outro, cabe à esquerda uma inevitável
reflexão quanto ao vácuo de mobilização por ela deixado, a sua “maresia
institucional”, ou seja, a sua corrosão programática por excessiva pragmática
no jogo de poder sob as atuais regras.
Por outro lado, a simpatia da massa popular por um movimento que não é
dela, traz a tona, (falando em passagens de ônibus...), os riscos da conjuntura
econômica que está se formando, em que a inflação ameaça fortemente os esforços
de distribuição de renda empreendidos até então.
Atualização de 23 de junho.
Há momentos na história em que as coisas se
aceleram, estas manifestações de junho é um deles.
Sem comprometer as análises acima, se impõe
reconhecer que as manifestações estão assumindo um caráter abertamente
“lacerdista”, com um viés anti-partidos, que pode rapidamente evoluir para um “fora
Dilma”.
Esta evolução é tanto mais provável quanto
reforçada pela essência social do movimento: as camadas médias, justamente as
menos beneficiadas no atual processo e, portanto, muito vulneráveis ao discurso
“lacerdista” da grande imprensa.
Diz-se que as mudanças da história e as
quedas de aviões nunca têm uma única causa: são frutos de um somatório de
fatores que se sucedem e entrelaçam.
Estes fatores estão se entrelaçando
perigosamente:
- Uma esquerda e um movimento social atônitos e desnorteados;
- Um Governo que ainda não sabe o que fazer: o discurso da Presidente do dia 21 referendou a manutenção da ordem face ao vandalismo e trouxe propostas de forma vitoriosa, mas atrasada, tudo indica que a denúncia do golpismo e o apelo às bases populares já se fazia necessário;
- A mídia obtém na base social das camadas médias a possibilidade concreta de apontar seu “lacerdismo” contra a Dilma;
- Há uma passividade repressiva em nome da democracia e alguns milhares de pessoas paralisam e causam pavor a conglomerados de dezenas de milhões;
- A inflação e aumento da crise, com a desaceleração do mercado de trabalho, criam o enorme risco de tornar as classes trabalhadoras, (hoje passivas, solidárias à luta contra o aumento das passagens, e contrárias ao caos do vandalismo, mas não “lacerdista” e “anti-partidista” militantes, muito menos aliadas do anti-Dilma), aliadas destas posturas; se isto acontecer será o pior dos mundos para o projeto popular!
Ao que tudo indica se impõe medidas
rápidas:
- Se o “Fora Dilma” surgir não será mais possível ignorá-lo; é preciso denunciá-lo e atacá-lo publicamente;
- A participação nas manifestações seguindo a regra do jogo deve ser reavaliada; pode ser necessário chamar contramanifestações, evitando choques diretos;
- A força pública tem que, com base em legislação e medidas do executivo, evitar o bloqueio de vias públicas por um tempo excessivo;
- Os partidos populares, o movimento social e o Governo, (este último com parcimônia), têm que apelar à base do povo e a classe trabalhadora pelas mudanças e contra o golpismo, denunciando as bandeiras dos “anônymus” da internet e a intenção de acabar com as conquistas como o bolsa família e a universidade para todos; é preciso recorrer a massa para enquadrar as camadas médias enquanto é tempo!
Não há dúvida, as manifestações que
iniciaram contra a carestia das passagens por grupos de ultra-esquerda ligados
às camadas médias e, portanto, através das “redes”, foi rapidamente
hegemonizado por um discurso moralizador de cunho conservador e “lacerdista”,
que predominava nesses meios virtuais, por conta da ação da grande mídia e sua
formação do “senso comum”.
É preciso reagir ou o retrocesso será o
fruto da onda conservadora que está se formando.
“Saúde, Educação
Dilma Sim
Golpe Não!”
Tudo o que se constata hoje pode não ser válido amanhã: o momento é de
aceleração.
Daniel Sebastiani é professor da Fundação Liberato Salzano em Novo Hamburgo/RS e coordenador da Fundação Mauricio Grabois no RS.
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